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Relacionamento abusivo entre irmãos como consequência de um pai autoritário?


Para uma história cuja narrativa está focada em horrores sobrenaturais, Stranger Things retratou também monstruosidades que não são de outra dimensão.

O que mais me marcou na 2ª temporada de Stranger Things não foi a possessão de Will, nem os túneis gigantes, os poderes da 008 ou a Eleven se matando para fechar o portal no final da temporada. Os momentos mais inquietantes foram os constrangimentos que a menina Maxine Mayfield, ou simplesmente Max, de 13 anos, sofria cada vez que encontrava seu meio-irmão Billy Hargrove, de 17 anos.

Max e Billy são dois novos personagens introduzidos na 2ª temporada da série. Desde a primeira cena em que aparecem no primeiro episódio da temporada, fica claro ao espectador que não há muita harmonia entre a dupla. Assim que chegam à escola, Max se afasta sem cerimônias ou cumprimentos, como quem se sente livre da obrigação de ser acompanhada pelo irmão no percurso para a escola. Sequer há falas nessa cena.

Os diversos encontros que se seguem ao longo dos episódios, deixa claro que há um relacionamento instável. Mais do que isso, os diálogos trocados pela dupla a maioria das cenas dentro do possante de Billy , mostram que esta relação conturbada parece refletir uma instabilidade familiar, cujas circunstâncias, então desconhecidas pelo espectador, são usadas para fundamentar as ameaças assustadoras, intimidações e provocações de Billy contra Max.



Grosseiro nas palavras, Billy é do tipo valentão, atleta e descolado. Billy apresenta comportamentos de risco como direção perigosa e uso de cigarro. Billy é o aluno antissocial que pratica bullying, que tem a necessidade de mostrar autoridade, domínio e superioridade. Na nova escola, Steve é sua vítima preferida.

Embora simpatizemos com a personagem Max, não podemos ignorar que ela apresenta comportamentos que rompem com o padrão apresentado pelas outras crianças de Hawkins. Com seu jeito moleque e skate na mão, ela parece sempre mais agitada e desconfortável. As expressões faciais de raiva, desprezo, de desconfiança e de ironia no rosto da menina predominam ao longo de toda temporada, sobretudo nos primeiros episódios. Quando está com o irmão, a expressão de medo ou apreensão intercala com a raiva sentimento que é manifestado em comportamentos quando ela bate a porta do carro e, por pelo menos duas vezes na temporada, retribui o irmão com o dedo-do-meio; ou quando, no final da temporada, se sentindo mais confiante por estar na presença dos amigos e também para defendê-los, ela ataca o irmão e o intimida com um taco de baseball como quem diz: “Não aguento mais. Chega!”.



Não é que Billy e Max se odeiem completamente, mas as dores e feridas de uma história familiar penosa impede qualquer expressão de carinho como irmãos "normais". Eles foram treinados para serem "durões", e qualquer sinal de afeição ou suavidade deixaria exposta a vulnerabilidade emocional que carregam dentro de si. Se Billy realmente odiasse Max, ele simplesmente não se importaria por onde a menina anda ou com quem ela anda. Obviamente, o fato de Billy sempre acompanhar Max parece ser uma obrigação forçada pelos pais, e é claro, ambos se sentem impotentes e incomodados com a situação. Mas alguém que realmente não se importa, não implica tanto com o outro.

Consideremos o comportamento abusivo apresentado por Billy...

As ciências do comportamento há tempos têm identificado que o estilo parental (ou seja, as atitudes dos pais na criação dos filhos) é um dos principais determinantes dos comportamentos e personalidade das crianças. A literatura científica tem identificado quatro principais estilos parentais: estilo autoritativo, estilo autoritário, estilo indulgente e estilo negligente.

O controle autoritário refere-se a práticas de disciplina coercivas, restritivas e rígidas, que enfatizam os aspectos negativos do controle, como a punição severa e a privação de carinho. O estilo parental autoritário é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de comportamentos antissociais, delinquência, uso de substância, dificuldades escolares e bullying em crianças e adolescentes. (Obviamente nem todo pai e mãe autoritários terão um filho problemático, e nem todo filho problemático tem um pai ou uma mãe autoritários).

Em Stranger Things, o comportamento de Billy e sua relação abusiva com Max nos faz supor uma coisa: certamente haveria um histórico familiar problemático por detrás daquelas cenas. A insistência do jovem em repreender, intimidar, culpar e ameaçar a meia-irmã, além da necessidade de mostrar autoridade, nos faz admitir a hipótese de que possivelmente há uma figura de poder que exerceu ou ainda exerce controle autoritário sobre Billy. Agredir ou humilhar os outros é, por um lado, um padrão de comportamento que Billy aprendeu com um modelo de autoridade e, por outro lado, uma forma do jovem compensar as agressões e humilhações que ele mesmo sofre ou sofreu em casa ou outro espaço regular onde cresceu.

Mas, até então, não sabemos quem são os pais de Billy e Max. Quem é a figura que exerce controle autoritário sobre Billy? É uma mãe autoritária? Um pai autoritário? Um padrasto ou madrasta? Um tio ou avô que cuida dos dois?

Só conhecemos a mãe de Max, Susan e o pai de Billy, Neil, brevemente em uma cena no início do oitavo episódio. Billy está se arrumando para um encontro quando seu pai invade seu quarto e exige saber onde Max está. A figura autoritária que esperávamos é o pai de Billy, e seu controle autoritário torna-se imediatamente evidente – ele empurra o filho contra a parede e o golpeia na cara e, segurando-o pela garganta, obriga-o a repetir as palavras de ordem “respeito e responsabilidade”, pedir desculpas a Susan e cancelar o encontro para procurar por Max.



Neil não parece ser aquele tipo de pai idiota, bêbado, que humilha e abusa dos membros da família por mera diversão. Pelo contrário, é do tipo militar, que coloca ordem na casa com ameaças, que exige submissão com violência e que acredita que atitudes irresponsáveis devem ser punidas com rigidez, e que o respeito deve ser imposto com regras rígidas e não com apreço mútuo.

O estilo “sargentão” autoritário fica evidente quando Billy, já com o olho lacrimejando, responde às ordens do pai com um coagido “sim, senhor!”, como um soldado responde ao seu superior no exército.

Susan, mãe de Max, embora desconfortável com a situação, não parece surpresa com a atitude do marido, que parece agir assim de forma recorrente no espaço doméstico.

Após a investida do pai, pela primeira vez Billy se mostra vulnerável, explodindo em raiva e lágrimas depois que o pai se retira do quarto.

A cena funciona para tornar os espectadores um pouco mais simpáticos em relação a Billy, mas não apaga a ideia de que ele é um completo babaca. Saber que Billy sofre violência por seu pai não desculpa suas próprias ações abusivas, mas ajuda a explicar. Os psicólogos sociais costumam apontar para um ciclo de abuso que passa por gerações, propondo a ideia de que crianças que são abusadas por seus pais são mais propensas a desenvolver tendências abusivas e a repetir esse comportamento.

A vida familiar de Billy e Max ainda é deixada inexplorada na maior parte da 2ª temporada. Afinal, por que a família de Max e Billy mudou-se para Hawkins? Haverá novas revelações nas temporadas a seguir? Provavelmente. Mas o caso Neil-Billy-Max é um retrato realista de relações abusivas que tornam crianças e adolescentes vulneráveis a desenvolver comportamentos problemáticos. Estaria a própria Max em risco para delinquência ou desenvolvimento de comportamentos antissociais, transtornos de ansiedade, depressão, comportamento autolesivos ou suicidas? Certamente. Mas, da mesma forma que a literatura científica tem apontado fatores de risco, pesquisadores também tem destacado fatores de proteção, e Max parece ter encontrado nos amigos relações positivas e mais saudáveis que asseguram que ela siga cursos de desenvolvimento mais favoráveis para sua saúde mental e bem-estar.




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