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Adultos que carregam traumas da infância têm dificuldade para recuperar memórias de experiências negativas – Verdade ou Mito?


por Eduardo de Rezende


Há um incontável número de pesquisas sobre as consequências emocionais e psicológicas de traumas e maus-tratos. Mas foi só recentemente que pudemos conhecer um pouco melhor sobre a relação entre memória e maus-tratos na infância.

Ilustração de criança sofrendo maus-tratos do pai; abuso físico, sexual, negligência, memória, terapia psicologia
Traumas da infância são muitas vezes resultado de um histórico de maus-tratos

 
Estudos científicos sobre a memória avançaram muito nas últimas décadas e o entendimento de como as pessoas que sofreram violência na infância lembram e contam suas primeiras experiências traumatizantes é importante não apenas para fins terapêuticos, mas também em entrevistas forenses e processos legais e na construção de políticas públicas.



Maus-tratos, Trauma e suas Consequências


Traumas são feridas psicológicas resultantes de uma situação extremamente estressante ou ameaçadora, acompanhada de sentimentos de impotência, medo e desesperança. O trauma na infância é muitas vezes decorrente de um histórico de maus-tratos, o que inclui: negligência, abuso físico, sexual e/ou psicológico. Vítimas de maus-tratos são frequentemente privadas de experiências necessárias para um desenvolvimento seguro e saudável e crianças que sofreram maus-tratos estão em risco para diversos problemas, não só na infância, mas ao longo de toda a vida.

Estudos sobre os efeitos dos maus-tratos estão mais frequentemente associados à cosequências socioemocionais. Importantes efeitos negativos em crianças maltratadas incluem a dificuldade de regulação emocional, o desenvolvimento de crenças e expectativas negativas em relação a si mesmas e às outras pessoas, perpetuação de comportamentos autodestrutivos e prejuízos nas relações interpessoais.

A respeito das consequências cognitivas, alguns estudos encontraram déficits de inteligência, linguagem e de função executiva nas crianças que sofreram maus-tratos, especialmente naquelas que sofreram violência física e negligência. Em geral, crianças que sofrem maus-tratos estão, em média, um ou dois anos atrasadas na escola quando comparadas aos colegas da mesma faixa etária. Entretanto, esses déficits cognitivos e desempenho acadêmico prejudicado não são sempre observados.

Ocasionalmente, déficits cognitivos podem também afetar a memória de crianças maltratadas, independente do conteúdo a ser lembrado. Nesses casos o esquecimento não é consequência de uma defesa psicológica ou repressão, mas sim do desempenho cognitivo prejudicado devido a uma disfunção orgânica. Para ficar claro, considere esta analogia: imagine que alguém sofra um acidente de carro e, em consequência, sofra uma lesão neurológica que prejudique seu funcionamento cognitivo normal. Após este acidente a pessoa apresenta alguns problemas de memória, não porque o acidente foi angustiante e ela evita se lembrar da cena, mas simplesmente pelo fato do acidente ter ocasionado uma lesão cerebral que prejudicou o funcionamento de funções cognitivas como a memória.



Trauma e Memórias Reprimidas: verdade ou mito?






O que tem sido comumente mostrado pelos estudos é que, em geral, com exceção dos casos onde há lesões neurológicas e déficits cognitivos, as crianças maltratadas entendem muito bem e podem responder adequadamente questões em uma entrevista onde sua capacidade de memória é requisitada.

Segundo o professor de psicologia Sven A. Christianson, da Universidade de Estocolomo, durante os eventos traumáticos a atenção se concentra na principal fonte de estresse que é lembrada particularmente bem. Quanto mais traumático o evento, maior será a lembrança de sua fonte principal. As pesquisas em neurociência tem confirmado que a ativação da amígdala em situações emocionais intensas prediz maior memória para informações e eventos negativos.

Diversos fatores emocionais em situações de maus-tratos podem levar a uma resposta de estresse prolongada e um estado de vigilância, de preocupação e de ansiedade. Os maus-tratos estão também associados ao maior foco de atenção em certas “informações emocionais”. Por exemplo, pessoas que foram maltratadas na infância reconhecem mais facilmente emoções negativas como raiva e tristeza. Por outro lado, essas pessoas têm maior dificuldade em se desprender de estímulos negativos, regular suas reações e agir adequadamente. Crianças que foram maltratadas, mesmo quando adultas, exibem grande atenção e boa memória em relação às lembranças relacionadas aos traumas.

Diferente do que se costuma acreditar, crianças que sofreram maus tratos têm uma memória muito mais forte para experiências negativas. Crianças que sofrem maus-tratos estão muito mais vigilantes e atentas a informações emocionais negativas, respondendo mais rapidamente e por período mais prolongado, levando a uma melhor codificação dessa informação na memória e, posteriormente, a uma melhor recuperação dessa informação em forma de lembrança.

Em geral, as pesquisas sugerem que adultos que na infância vivenciaram situações de maus-tratos repetidamente estão muito mais inclinados a lembrar das situações de abuso. Eles teriam menor probabilidade de esquecer o abuso e, portanto, dificilmente exibiriam "memórias reprimidas" ou "memórias perdidas" de experiências traumáticas, como, por exemplo, abuso sexual.

Estratégias psicológicas defensivas ou de evitação para reprimir lembranças perturbadoras parecem ocorrer só em um número muito pequeno de pessoas. Nesses casos, o processamento de informações limitado pode levar estes indivíduos a apresentarem pouca memória para informações emocionais. Mecanismos defensivos, tais como repressão ou dissociação, parecem ocorrer principalmente quando a experiência traumática está associada com a auto-culpabilização, falta de esperança e traumas repetidos. Assim, repressão e dissociação são mais prováveis de ocorrer em casos de abuso sexual.



Não pensar em um trauma não é o mesmo que ser incapaz de lembrá-lo


O que comumente ocorre é que muitas pessoas estão inclinadas a não pensar sobre experiências negativas, seja porque têm vergonha de falar sobre o assunto com outras pessoas, porque tem medo da repercussão ou de possível repreensão, ou porque essas lembranças ativam fortes sentimentos negativos. O fato das pessoas não estarem inclinadas a pensar e muito menos a relatar eventos negativos não é em si um "problema de memória" ou uma “defesa inconsciente”, mas sim uma estratégia de regulação emocional para evitar ativação de sentimentos como vergonha, humilhação, raiva, medo, tristeza, desesperança e outros. Ou seja, as pessoas comumente recordam muito bem de suas experiências negativas, mas desenvolvem um estilo de regulação emocional onde o “não-pensar” e o “não-falar” sobre essas experiências tem uma função positiva para seu bem-estar.

Richard McNally, professor de psicologia de Harvard e autor do livro Remembering Trauma” (Relembrando os traumas, em português), diz que pesquisas recentes têm superado varias ideias populares sobre memórias traumáticas. Uma das conclusões do autor, após vasto estudo sobre o assunto, é que as experiências traumáticas são “inesquecíveis”. Embora as pessoas não estejam pensando em experiências perturbadoras o tempo todo, os eventos traumáticos raramente se apagam da consciência. Além disso, nos lembra o professor, a ausência de pensamentos sobre os traumas – como o abuso sexual na infância – não deve ser confundida com amnésia ou incapacidade de lembrá-los. Em seu livro, ele afirma que evidências científicas de “memórias reprimidas” de traumas, repressão ou amnésia psicológica são muito fracas.

A psicóloga norte-americana Elizabeth Loftus é mais rigorosa em suas críticas. Ela é autora do livro "The Myth of Repressed Memory" (O Mito das Memórias Reprimidas, em português). A crença popular, não só entre o público leigo mas também entre muitos terapeutas, é de que quando a mente é forçada a enfrentar uma experiência horrível ela tem a capacidade de enterrar toda a memória tão profundamente dentro do inconsciente que dificilmente pode ser lembrada. Em seu livro, a autora afirma que após décadas de pesquisa, não há absolutamente nenhum apoio científico para a idéia de que as memórias do trauma são comumente banidas para o inconsciente. Para a autora, a ideia de memórias reprimidas é um "mito"!



"Amnésia infantil" não é memória reprimida


Ainda de acordo com o professor Richard McNally, não devemos relacionar memórias traumáticas reprimidas com a ausência de lembranças da nossa primeira infância. A maioria das pessoas lembra muito pouco das suas vidas antes dos 4 ou 5 anos de idade. O que muitas vezes lembramos dessa época são memórias construídas depois, através de fotos, vídeos ou relatos de nossos familiares. A maturação cerebral e as mudanças cognitivas, especialmente na linguagem, tornam difícil para as crianças mais velhas – e muito menos para os adultos – lembrar eventos codificados durante os anos pré-escolares. O resultado é que as crianças muito pequenas podem não conseguir lembrar-se dos eventos adversos que ocorreram durante os primeiros anos, não porque a experiência tenha sido tão traumática que tenha sido bloqueada da consciência, mas porque naturalmente muito pouco é lembrado desses anos, graças a "amnésia infantil" normal desse período. Alguns casos de aparente incapacidade de recordar situações de abuso sexual parecem atribuíveis à amnésia da infância devido à idade muito jovem das crianças quando do ocorrido.



Conclusão


Em síntese: existem casos em que a pessoa pode esquecer completamente um episódio traumático? Sim! Mas esses casos são MUITO RAROS. Em geral, as pessoas se lembram muito bem de situações traumáticas e de maus-tratos na infância, inclusive de situações de abuso sexual, mas frequentemente essas pessoas estão inclinadas a evitar pensar e falar sobre suas experiências negativas.



Para saber mais: 


McNALLY, Richard. Remembering Trauma. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003.
GOODMAN, QUAS e OGLE. Child Maltreatment and Memory. Annual Review of Psychology, 2009. 61:325–51.
CARRICK, QUAS e LYON. Maltreated and nonmaltreated children’s evaluations of emotional fantasy. Child Abuse & Neglect, 2009.
SPRATT et al. The Effects of Early Neglect on Cognitive, Language, and Behavioral Functioning in Childhood. Psychology (Irvine, Calif). 2012; 3(2): 175-182.
VELTMAN e BROWNE. Three decades of child maltreatment research: implications for the school years. Trauma Violence Abuse, 2001, 2:215–39.
McNALLY, Richard. Recovering Memories of Trauma: A View From the Laboratory. Current Directions in Psychological Science, 2003, Vol 12, Issue 1, pp. 32 – 35.
PRICE e CONNOLLY. Children's recall of emotionally arousing, repeated events: a review and call for further investigation. International Journal of Law and Psychiatry, 2008 Aug-Sep; 31(4): 337-46.
McNALLY et al. Directed forgetting of trauma cues in adult survivors of childhood sexual abuse with and without posttraumatic stress disorder. Journal of Abnormal Psychology. 1998 Nov;107(4):596-601.
CHRISTIANSEN, Sven-Ake. Emotional Stress and Eyewitness Memory: A Critical Review. Psychological Bulletin, 1992, Vol. 112, No. 2, 284-309.

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