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Interpretações alternativas da Bíblia são usadas para mudar crenças sobre disciplina dos filhos

Em estudo recente, pesquisadores concluíram que, além de apresentar evidências científicas, interpretações alternativas de textos bíblicos são mais convincentes em mudar crenças e atitudes de cristãos em relação ao castigo físico na disciplina de crianças.

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As crianças e adolescentes certamente precisam de disciplina. Ninguém duvida disso. Porém, há décadas pesquisas têm mostrado que há diferentes práticas de disciplina: positivas e negativas. As negativas ou punitivas causam humilhação, desconforto, danos físicos e emocionais. O castigo corporal tem um efeito imediato, cessando o problema naquele exato momento, mas não resolve a conduta no longo prazo. Pelo contrário, gera na criança resistência, sentimentos de raiva, desejos de vingança, rebeldia e possíveis retraimentos, além de ser um modelo de comportamento agressivo que a criança reproduzirá quando achar necessário.

Psicólogos e cientistas sociais geralmente concordam que a surra não é um método efetivo de disciplina e está associada com uma variedade de problemas de comportamento e saúde mental nas crianças e adolescentes. Apesar disso, a punição física de crianças por pais e outros responsáveis é uma prática comum ao redor do mundo.

Muitos fatores contribuem para crenças e atitudes a favor do castigo físico. A maioria dos pais batem nos filhos porque acreditam que esse é um método efetivo e insubstituível de disciplina. Não é surpresa dizer que pais que apanhavam quando crianças apresentam mais atitudes favoráveis ao castigo físico e estão mais propensos a agredir seus próprios filhos. Da mesma forma, é mais provável que adolescentes concordem com punições físicas como prática disciplinadora se eles mesmos foram castigados assim.

Um fator às vezes negligenciado nos estudos sobre punição física são as convicções religiosas dos pais. Algumas pesquisas apontam que especialmente cristãos estão mais propensos a aceitare a praticar punições físicas contra os filhos. Dois fatores contribuem para isso. Primeiro, vários versos da Bíblia são interpretados por alguns cristãos como uma ordem para o castigo físico como o versículo amplamente citado: "aquele que poupa a vara odeia seu filho, mas aquele que o ama desde cedo o castiga" (Provérbios 13:24).

Outros versículos comumente citados são:
  • A tolice está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a livrará dela. (Provérbios 22:15)
  • Não retire a disciplina da criança; pois se a castigar com a vara, nem por isso morrerá. Castigue-a com a vara e livrarás a sua alma do inferno. (Provérbios 23:13,14)
  • Golpes e feridas são a purificação do mau, como também as pancadas que purificam o íntimo do ser. (Provérbios 20:30)


Um segundo fator que contribui para o uso de castigos físicos é que cristãos conservadores são especialmente suscetíveis a acreditar que as crianças estão inclinadas a rebeldia e ao pecado desde o nascimento, e que essa propensão inerente requer punição. A crença é de que o filho já nasce rebelde e crescerá sem respeito se os pais não o moldarem. Na inevitável guerra mundana entre o bem e o mal, a submissão final da criança a um pai serve como um modelo para seu futuro relacionamento com Deus.

Uma vez que crenças e atitudes a favor do castigo físico são aprendidas principalmente em ambiente familiar, a mudança de opinião é um processo de difícil ocorrência. Entretanto, como qualquer posicionamento, crenças e atitudes sobre punição também podem mudar quando a pessoa sofre influência da comunidade ou quando ela ganha informações adicionais sobre o tema.

Muitas pesquisas têm demonstrado que intervenções onde há apresentação multimídia de informações tem sido úteis em mudar crenças e atitudes de pais sobre práticas punitivas. Entretanto, dada a forte conexão entre orientações conservadoras cristãs e atitudes a favor da disciplina rigorosa, pode ser difícil convencer muitos fieis das evidências científicas que aconselham o abandono de práticas coercitivas na criação dos filhos.

Não é necessário lembrar que nem todos os cristãos consideram o sentido literal dos textos bíblicos. Além disso, para muitos é óbvio que há uma clara distinção de posicionamento entre o Antigo e o Novo Testamento. É inimaginável para muitos cristãos que a violência seja justificada pelas palavras do Novo Testamento onde Jesus tanto pregava o amor ao próximo. Entretanto, para outros tantos cristãos, o texto bíblico é usado como um guia literal na educação disciplinar dos filhos.

Se, para muitos cristãos, a Bíblia prevalece sobre a ciência, é importante então que tentativas de mudança de crenças e atitudes sejam abordadas considerando as interpretações e entendimentos sobre as escrituras.

Campanha da organização não-governamental Save the Children contra agressão física . Na foto, o aprendizado de comportamentos agressivos cria um ciclo de abuso familiar ao longo das gerações.
(fonte: https://www.savethechildren.net/)


Em um estudo publicado recentemente, duas diferentes intervenções foram avaliadas para saber qual delas era mais eficaz em convencer esse público sobre mudanças de atitude em relação ao castigo físico:

I. A primeira intervenção focava na comunicação de evidências científicas sobre a ineficácia e potenciais riscos da punição física;
II. A segunda intervenção apresentava, além de evidências científicas, interpretações alternativas a passagens bíblicas que às vezes são usadas por cristãos para justificar a punição física.

No segundo grupo, foi abordada a importância de ver as passagens bíblicas dentro de um contexto cultural que sugere que tais passagens são realmente destinadas a colocar restrições sobre a violência em uma cultura onde a violência era comum. Em outras palavras, é importante não só considerar o contexto cultural em que a Bíblia foi escrita, mas é também importante considerar o fato de que de que a mensagem geral sobre práticas punitivas no Antigo Testamento foi realmente destinada a colocar limites contra as frequentes violações de regras morais na época. A comunicação também enfatizou que muitas interpretações cristãs atuais dessas passagens bíblicas não são interpretações literais, e conclui sugerindo que, embora as passagens bíblicas abordem a importância da disciplina infantil, as práticas disciplinares não violentas são provavelmente mais eficazes e que os cristãos não precisam, e não devem, espancar seus filhos.

Estudantes de uma universidade cristã, que possivelmente serão pais num futuro próximo, foram convidados a participar do estudo. Os resultados da pesquisa mostraram que, nas duas intervenções pode-se observar decréscimo de crenças e atitudes a favor do espancamento, entretanto, o decréscimo foi consideravelmente maior naqueles que participaram da intervenção que apresentava interpretações bíblicas alternativas.


O que a Bíblia diz?

A bíblia legitima a palmada? Quando lemos as seguintes passagens estamos tentados a responder sim:

  • "Aquele que poupa a vara odeia seu filho, mas aquele que o ama desde cedo o castiga." (Provérbios 13:24).
  • “A tolice está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a livrará dela.” (Provérbios 22:15).
  • “Não retire a disciplina da criança; pois se a castigar com a vara, nem por isso morrerá. Castigue-a com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Provérbios 23: 13-14).
  • “Golpes e feridas são a purificação do mau, como também as pancadas que purificam o íntimo do ser.” (Provérbios 20:30).

Entretanto, devemos ler essas passagens com uma compreensão do contexto cultural em que foram escritas. Com o nosso entendimento contemporâneo do valor de nossos filhos e de outras crianças, é difícil entender o grau em que elas foram desvalorizadas, negligenciadas e muitas vezes abusadas no mundo antigo. Por exemplo, o Código de Hamurabi, um antigo código babilônico de leis que data de aproximadamente 800 aC, orienta o violento "olho para o olho" como regra num mundo em que os pais eram instruídos a cortar a língua ou a mão de um filho desrespeitoso. Na Roma antiga, crianças indesejadas (na sua maioria meninas) poderiam ser deixadas para morrer sem penalidades legais ou sociais, e os pais podiam vender seus filhos em escravidão para liquidar dívidas.

Dado que essas passagens do Antigo Testamento foram escritas para um povo que entendia que "socos e feridas" poderiam "limpar o mal" (Provérbios 20:30), não deve nos surpreender que, no mundo antigo, os pais seriam aconselhados a usar a "vara da disciplina".

Alguns estudiosos do cristianismo levam essa explicação cultural um passo adiante, argumentando que a mensagem geral sobre violência no Antigo Testamento é na verdade destinada a colocar limites na violência. Como assim? Mais uma vez, devemos entender o contexto. Para muitos, a cultura antiga era mais violenta do que prescrito nas Escrituras, e essa serviria na verdade para colocar limites a essa violência. Num mundo em que os mais fracos e desprivilegiados, inclusive as mulheres, as crianças, as minorias étnicas e os escravos, às vezes eram violentamente maltratados, as várias passagens sobre violência e disciplina familiar no Antigo Testamento podem ser interpretadas como incentivando um tratamento mais humano e menos violento de outros, incluindo crianças. Ou seja, os textos na verdade colocam limites na disciplina dos pais.

A escravidão serve como um exemplo comparativo. A Bíblia não condena a escravidão. Na verdade, muitas das passagens do Velho Testamento sobre a escravidão são controversos. Por exemplo, de acordo com Êxodo 21: 20-21,
"qualquer pessoa que bate seu escravo masculino ou feminino com uma haste deve ser punida se o escravo morrer como resultado direto, mas não deve ser punido se o escravo se recuperar após um dia ou dois, uma vez que o escravo é sua propriedade".

Em um mundo onde a escravidão era inquestionável, e os métodos de controle social brutais, e às vezes mortais, costumavam ser empregados por proprietários de escravos, esta passagem, como as passagens sobre a disciplina da infância, tornou-se uma forma de regular -- uma tentativa de afastar o povo de Israel do contexto cultural predominante e ir em direção a algo melhor.

Obviamente, nós, e muitos outros cristãos, discordamos que a abordagem bíblica apresentada nesses textos do Antigo Testamento é razoável e controlado. Na verdade, muitos dos versos bíblicos sobre o castigo físico das crianças são brutais e violentos e, segundo os padrões atuais, são abusivos! Na verdade, se usássemos a Bíblia como uma "receita" sobre como disciplinar nossos filhos, "limparíamos o mal" com múltiplas cicatrizes que deixaríamos na pele de nossos filhos com uma vara.

A maioria dos cristãos, de fato, abandonou muitas das mais violentas orientações bíblicas que endossam a violência. Muitos religiosos, por exemplo, encorajam os pais a adotar uma abordagem amorosa e não abusiva, e que as crianças nunca devem ser espancadas. Não há dúvida de que as crianças precisam de disciplina. Mas a Bíblia foi escrita em um momento em que a violência foi entendida como a única maneira de disciplinar. Hoje sabemos que existem outras formas de disciplinar as crianças, com muitos métodos alternativos cientificamente apoiados como mais eficazes do que a palmada. Considerando a tentativa das Escrituras de regular e controlar a violência física naquele tempo, acreditamos que uma leitura moderna das escrituras não seja interpretada como um aval para a punição física.



Para saber mais:

PERRIN, MILLER-PERRIN e SONG. Changing attitudes about spanking using alternative biblical interpretations. International Journal of Behavioral Development, 41:4, 514-522, 2017.

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